Aos poucos, alguns dos grandes criadores dessa onda “Liberal” que tomou conta de muitas cabeças brasileiras vão se dando conta de que a receita deles para a economia brasileira não apresentará grandes resultados.
No mesmo dia em que o economista André Lara Resende, um dos criadores da base do Plano Real, admitiu que está errado o consenso econômico que manda cortar gastos públicos de forma quase obsessiva para gerar confiança nos mercados para termos crescimento, o ultraliberal João Doria, agora governador de São Paulo, anunciou um programa de incentivos à indústria automobilística.
O estudioso pôs o dedo na ferida, o político acusou a dor.
Não que exista uma relação prática entre ambos os fatos, mas é interessante a coincidência no tempo: parece uma dessas sincronicidades destinadas a nos trazer uma mensagem de confirmação.
O credo ultraliberal, diz Resende em seu artigo publicado no Valor Econômico, levou o Plano Real a se tornar uma política “monetária e fiscal contracionista”. Em suas palavras: “Optou-se por combinar uma política de altíssima taxa de juros com austeridade fiscal. O resultado forma mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação”.
Outro efeito de tantos anos confiando na austeridade radical como geradora de boas expectativas (confiança) nos investidores foi, vejam só, uma perda de investimento produtivo. O que, para quem enxerga as coisas pelo lado da demanda, é fácil de explicar. Num país onde o dinheiro é retirado de circulação por opção política, haverá mais ou menos consumo? Menos! Um país que tem seu consumo em queda recebe investimentos produtivos? Certamente que não.

Claro, há idas e vindas e exceções para tudo. Mas a desindustrialização precoce brasileira demonstrada por muitos pesquisadores aponta exatamente para isto.
E eis que chegamos ao anúncio da Ford de São Bernardo do Campo. Vai fechar a fábrica que empregou gerações de brasileiros este ano. E as reações do governo liberal paulista deixaram o discurso nu diante da prática.
A reação de Doria
Também ontem, no dia em que Lara Resende publicou seu manifesto, Doria e seu secretário de Fazenda Henrique Meirelles (um ultraliberal de carteirinha) anunciaram um plano para o caso Ford.
Surpresa: vão dar um belo subsídio para montadoras de veículos instaladas no estado. Seu programa chama-se IvcentivAuto. Prevê desconto de 25% no ICMS para aquelas empresas que anunciarem plano de investimento de pelo menos R$ 1 bilhão com geração mínima de 400 empregos.
O próprio governador prometeu acompanhar de perto para se certificar de que o investimento será real e feito na produção. Vão ter que ampliar fábricas ou abrir novas unidades de produção.
A cereja do bolo veio com a fala de Henrique Meirelles: “Na medida em que houver mais produção, haverá mais arrecadação e sobre ela será dado o desconto de 25% do ICMS”, disse.

Eles não estão errados. Só o incremento da atividade econômica sobre a base produtiva já instalada aumenta a arrecadação e mantém o nível de emprego, possibilitando pensar em crescimento a futuro.
Mas se contradizem gravemente! Ora, qualquer pessoa que acompanhe o debate sabe que Meirelles e Doria, diante de uma situação hipotética como a da Ford, diriam que essas são coisas do Capitalismo, que os trabalhadores demitidos deveriam buscar se qualificar para conseguir outros empregos, ou então deveriam abrir negócios próprios e prosperar com muito trabalho e suor do seu rosto. Aceitando as privações do momento, estas pessoas de São Bernardo deveriam superá-las através do esforço, construindo uma nova vida a partir da perda de seus esteios econômicos.
Mas, na hora em que a coisa acontece de verdade, o que fazem? Querem usar o poder de Estado que têm sobre as finanças públicas e garantirem como puderem a manutenção dos empregos.
Fazem, na realidade, aquilo que o mundo desenvolvido vem fazendo desde a grande crise de 2008. Estão incentivando a atividade econômica produtiva usando-se de instrumentos públicos legítimos.
A ficha que cai
No Brasil de hoje, montou-se uma realidade paralela em que as pessoas que defendem a atividade econômica privada e as relações de mercado como geradoras de riqueza só podem ser adeptas do ultraliberalismo.
É como se fosse impossível aceitar a necessidade de existência de empresas privadas e do conjunto de suas atividades mas, ao mesmo tempo, entender que instrumentos de defesa do trabalho e da renda social também são necessários. Ao contrário, é perfeitamente possível.
Esta interpretação extremada e equivocada foi obra da nova mídia econômica na internet, de comentaristas que só percebem as coisas pelo prisma financeiro e por políticos que usaram a ignorância dos que acreditam na prosperidade através de empreendimentos para se eleger.
Agora, suas contradições começam a aparecer, e tem muito ainda por surgir. Alguns exemplos: 1) o Brasil flexibilizou a CLT para gerar empregos com a reforma trabalhista, mas o desemprego persiste altíssimo; 2) o Brasil adota há dois anos o discurso de confiança dos investidores para conseguir crescer, mas o PIB não sai do 1%; 3) o Brasil prometeu que esquemas público-privados trariam de volta as grandes obras de infraestrutura, mas isso não aconteceu; 4) o Brasil achou que o receituário da austeridade traria investimentos, mas ao contrário, a indústria nacional está aumentando a taxa de componentes importados na produção, reduzindo a força das cadeias produtivas locais.
E enquanto a ficha cai, temos um ministro ultraliberal com plenos poderes para aprofundar a prática ultraliberal, baseado nas mesmas promessas de antes. Provavelmente, quando ele entregar a reforma da Previdência, o “mercado” vai pedir mais. Quando ele der mais, vão pedir mais ainda. É isso que fazem, é assim que operam.
Enquanto não quebrarmos este ciclo, os resultados continuarão sendo aqueles apontados por André Lara Resende.
Por Fausto Oliveira